"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 31 de agosto de 2014

POETA-POEMA, 2: CHACAL

Quarto em Arles, de Van Gogh.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

OSSOS DO OFÍCIO

sempre deixei as barbas de molho
porque barbeiro nenhum me ensinou
como manejar o fio da navalha

sempre tive a pulga atrás da orelha
porque nenhum otorrino me disse
como se fala aos ouvidos das pessoas

sou um cara grilado
um péssimo marido
nove anos de poesia
me renderam apenas
um circo de pulgas
e as barbas mais límpidas da turquia

CHACAL (1951). Poeta, letrista de música e cronista brasileiro. Estreou em 1971, com o volume Muito prazer, Ricardo. Seus livros, impressos inicialmente pelo "método mimeógrafo", no qual foi um dos pioneiros, foram reunidos no volume Drops de abril (1983) pela editora Brasiliense, na coleção Cantadas Literárias.

sábado, 30 de agosto de 2014

POETA-POEMA, 1: JENARO TALENS

Sunday, de Edward Hopper.
| Expor um poeta, defini-lo com um só poema.
Despertar com ambos alguma consciência. |

DESDE ESTA BIOGRAFIA SE VEEM PÁSSAROS

Morte. Apenas a morte:
a deste nome escrito, a do dia.
Seu prazo também fora uma memória
colecionável como o tempo,
no qual nada ocorre,
ou é sua rotina tudo que ocorre,
esse lento trabalho do ourives
cego como o desejo de um recém-nascido.
Amadurecer, aonde agora?
As horas voltam, se repetem. Não,
logo será demasiado tarde.
Passas estupefato de um silêncio a outro,
e geme o vento, e sua avidez constrói
o resplendor do dia soberano.

JENARO TALENS (1946). Poeta, ensaísta e professor espanhol. Primeiro livro: No umbral do homem (1964). Sua poesia já vai traduzida em francês, inglês, italiano e alemão. O poema acima integra a única antologia do poeta publicada no Brasil: Eutopia (Imago, 1992). A versão é de Roberto Reis.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

EM LEMBRANÇA DE MINHA MÃE

Versão original, manuscrita, do poema.
Desde que entrou agosto, eu pensava no que postar aqui, hoje, para comemorar os 82 anos de nascimento de minha mãe, falecida em 18 de novembro de 2011. Por dias, fiquei a refletir e a tentar redigir, de memória, algum texto à altura de sua "presença em ausência". Por fim, e não é por acaso que se afirma ser “sempre mais escuro logo antes do amanhecer”, há dois dias despertei no meio da noite e comecei a rabiscar o seguinte poema, que, acredito, é uma homenagem mais digna do que qualquer texto que, em total consciência, eu chegasse escrever em lembrança de minha mãe. 

NOTURNO DE OUTRAS VIDAS

Sempre achei que morri no Titanic
Ou em Hiroshima
Ou Nagasaki.
Num banho de ilusão em Treblinka
Ou num terremoto no Cairo.

Mas hoje ― sei ― só morremos em duas ocasiões:
Na morte mesma
Ou quando nos vai nossa mãe.

domingo, 3 de agosto de 2014

DITADURA, ESTA, TAMBÉM

Danger Girl e seus "instrumentos".
"Toda a ditadura oficial e acadêmica é fatal à arte." (Ramalho Ortigão). Esta frase esteve muito tempo (alguns anos sem dúvida) aí em cima, no cabeçalho do blogue. Quando decidi por substituí-la, decidi também preservá-la numa postagem, afinal de contas ela tem muito a ensinar às pessoas, especialmente aos secretários estaduais de cultura e educação, começando pelos dois bonecos aqui da Bahia, a tirania Barreto-Rubim, que jogam com o destino das pessoas como, quando crianças, rolavam bolas de gude em suas brincadeiras.
 
Com as eleições às portas da realidade, não poupam esforços para tentar convencer as pessoas de que são, ainda, a melhor opção. E vão planejando, a essa altura e depois de tudo o que não fizeram, ações para 2015, 2016, 2017... certos de que conseguirão uma virada e a manutenção da "ditadura de não fazer nada", nem pelas artes nem pela educação, que rege o Partido dos Trapaceiros. E assim, depois, vão nos enfiar mais uma Copa do Mundo, com seu triste espetáculo de abertura e fechamento, entregues a quatro cantoras de baixíssima qualidade, só peitos, pernas e bundas.
 
Quando faltam voz, talento e repertório, é o que resta. São os únicos instrumentos. E a cultura e a educação legitimam os lamentáveis sucedâneos.