"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

quinta-feira, 10 de abril de 2014

LEITURAS, 47: BOM-DIA, TRISTEZA


Última edição brasileira: Bestbolso, 2007.
Há exatos 60 anos, vinha a público Bom-dia, tristeza (Bonjour, tristesse), de Françoise Sagan. Com menos de 20 anos de idade, a autora conseguiu a proeza de escrever um romance conciso (com pouco mais de 100 páginas), lírico (porque vazado de análises psicológicas de rara inspiração) e eficaz, uma vez que expressava os anseios e o desânimo de toda uma geração do pós-guerra, e não o fazia por pose nem com intenções panfletárias. A soma de tudo isso levou a obra a se tornar um dos maiores fenômenos mundiais da literatura daquela segunda metade do século XX, gerando, como de hábito, inúmeras imitações e agraciando a autora com uma fama que nem ela mesma, em seus instantes de mais otimismo, poderia imaginar.

Cinco personagens apenas: Cécile, seu pai Raymond, duas amantes deste, que são Anne e Elsa, e Cyril, namorado de Cécile. Um verão, férias, uma vila à beira-mar, os dias vazios preenchidos por imersões na natureza, ao sol, ao sabor do vento e do mar. É neste cenário e nestas circunstâncias que Sagan fará sua personagem transitar, dividida entre os prazeres e as obrigações filosóficas, entre a necessidade de seguir suas intuições e obedecer sua futura madrasta, Anne, mulher inteligente, autônoma, fria e, até então, estoica, indiferente, quase desdenhosa das coisas mundanas. 

Desencanto, esta é a palavra que define o livro e sua protagonista, Cécile, a narradora, que está com mais ou menos 17 anos. Desencanto com a vida e com as pessoas, com o mundo e com as relações (pautadas sempre em algum tipo de interesse), com o amor, o porvir, o cotidiano banal, a fuga nas noites por festas inócuas nas quais se conhecem pessoas que nada acrescentam e às quais se somam solidões. No fundo de tal sentimento, como a sedimentá-lo, o consumismo desenfreado, as futilidades, a ironia e o cinismo, subterfúgios para uma alma que sofre; o dinheiro, as drogas, a música, que marca com seu ritmo e sua melodia triste uma existência vazia e sem amanhã.

Bem entendido, esta é uma descrição de nossa época, sem os aparatos tecnológicos que acabam por agravar tais circunstâncias. Se no romance de Sagan as pessoas sofrem porque se relacionam e a existência não presta, hoje estamos piores, pois não nos relacionamos senão virtualmente e prevalece, no ar e no caos, um otimismo exacerbado, de falsa alegria, impulsionado pela mídia. "Esse é o melhor dos mundos possíveis", diz a tevê a cada comercial, "e nós temos aquilo de que você precisa". Volta o apresentador do programa e logo entrevista uma pessoa linda, sadia e bem-sucedida. A mensagem que fica é: "Seja assim também! Você pode". 

O mundo do romance de Sagan é o pós-guerra, misto de deslumbramento e destruição, de reconstrução e análise do que restou. Já o nosso, é o pós-nada ou pós-qualquer-coisa-que-se-queira. O politicamente correto em meio às incorreções políticas, disfarçadas de boas intenções. Age-se em surdina, em benefício próprio e do compadrio, ao tempo que se diz, diante das câmeras e na imprensa em geral, que se está fazendo isso e aquilo em prol da sociedade. Mente-se o tempo todo, na vida e na internet. Criam-se "lugares" onde a intenção é exatamente essa: mentir e fazer parecer.

Relido, o livro de Sagan ainda tem a sua força, especialmente como representação de um universo íntimo, magoado pelo mundo, mas, diante de nossa época, sua dor é quase uma caricatura, pois, no espelho, as máscaras estão todas expostas, e nada é preciso dizer, nem escrever, visto que perdemos o gosto pela sutileza, nos embrutecemos naturalmente e por nada, ficamos mal-educados, e isso virou charme, só pensamos em nós mesmos, chamamos de amigo a qualquer um, nos revelamos o que não somos ou o que gostaríamos de ser a todo instante e ainda pretendemos que as pessoas, ensimesmadas também, elogiem isso como se fosse um mérito. Não é, é só um jogo.

Sagan escreveu, há 60 anos: "A liberdade de pensar, e de pensar mal e de pensar pouco, a liberdade de escolher minha própria vida, de escolher eu mesma. Não posso dizer 'de ser eu mesma', pois eu não era mais que uma pasta moldável, mas a de recusar os moldes". A filosofia, ou pelo menos o comportamento, existencialista vai nestas palavras. Mas é um desejo que se sufoca pelo destino, que, em última instância, decide a vida da protagonista. No entanto, sem seu ato primário, que a tudo deflagrou, o destino não se cumpriria. Portanto, foi Cécile quem decidiu por si mesma. Ela "foi ela mesma", afinal.

Não podemos dizer o mesmo das Céciles atuais, à nossa volta. Inconscientes, moldáveis e sem reconhecer os moldes, elas vagam. Mas são aparentemente felizes. Estão nos seus lugares de mentir e encenar.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A PROSA DE UM POETA


Quarta-feira, no Café Terrasse, no início da Ladeira da Barra, o escritor Bernardo Almeida, um dos 21 autores enfeixados no coletivo Sangue novo (Escrituras, 2011), lança seu livro de contos O vencedor está morto (Confraria do Vento, 2014). Tive a honra de escrever a introdução daquela coletânea e, sem dúvida, Bernardo Almeida foi um dos poetas que mais me impressionaram. Ao saber que ele escrevia contos, não pude esconder minha alegria, pois sou adepto de uma ideia, um tanto francesa, de que o escritor deve buscar variação e versatilidade sempre, tanto de forma e assunto quanto de gênero. Mas obviamente que um Jean Cocteau e um Boris Vian não nascem em todas as gerações nem em qualquer país. Quarta-feira estou lá, para ter a honra de ler a prosa de um poeta que tem versos assim:

EN CLOSE

É a vida
Fogo-fátuo
Desespero
E os pudicos
Mais fodidos estão
Nessa história
De dor e degredo. 

BERNARDO ALMEIDA
(Sangue novo, 2011)