BASTOU QUE O TELEFONE TOCASSE
Passei meses sem ser mais poeta.
Passei meses sendo qualquer coisa
Entre a certeza e a vida, que são coisas
Que evitam a poesia e não exigem rima.
Mas bastou que o telefone tocasse,
Que a voz do outro lado dissesse
“Se prepare, você precisa ser forte”,
Para que eu soubesse o que sempre soube:
Que o que acontece já aconteceu.
De fato, minha mãe já havia morrido,
E eu já fora seu filho, em todo o sempre
Que só agora a física explica
E a poesia sempre susteve.
O futuro é, o passado será e o presente foi.
Tudo já aconteceu e ainda acontece e acontecerá.
Minha mãe, portanto, está nascendo, neste momento,
E também está sonhando, seu rosto lindo e adolescente,
Com seu amado, de quem nascerei em breve.
E é inevitável que eu pense, como Wislawa Szymborska,
Que, tão logo começa a ser pronunciada,
A palavra futuro torna-se passado.
Tão logo se morre, começa-se a nascer, por analogia.
E, assim, em algum lugar minha mãe está à minha espera.
E, assim, em algum momento eu saio de suas entranhas.
Noutro, meu pai me faz,
E seus olhos e os dela são os mais felizes.
Noutro ― ainda mais puro ―, ela me acaricia,
Me põe para dormir,
Me faz tomar o remédio, o banho, e comer e rir
E pronunciar as primeiras sílabas.
Noutro ainda, e não mais importante,
Ela me ensina a ler, a escrever,
A combinar as palavras.
Estas, com sua falta, sua imensa presença ― incorpórea.
Muitas pessoas confundem humor e sarcasmo com ironia.
Ironia é isto:
Em setembro, levei minha mãe ao aeroporto,
Para passar um mês em São Paulo com meu irmão.
Em novembro, fui buscá-la, no mesmo aeroporto,
E ela estava dentro de um caixão.
Mas nem mesmo isto é novo nem será,
Pois já aconteceu, está acontecendo e acontecerá.
Tatibitateio minhas primeiras sílabas num futuro passado,
E meu pai e minha mãe riem.
Acabaram de se conhecer, de se amar,
E já me viram nascer
E já se separaram
E já de volta de novo, olhos nos olhos,
Lábios que se tocam.
Costuma-se chamar tempo ao correr dos dias.
Mas tempo é palavra imprecisa.
Chamemos a tudo vida ― o antes, o depois e o agora.
E fiquemos à espera, no entrepalavras,
Do que nos reserva a sintaxe da História.
MAYRANT GALLO. Salvador, 21 de novembro de 2011.
Passei meses sem ser mais poeta.
Passei meses sendo qualquer coisa
Entre a certeza e a vida, que são coisas
Que evitam a poesia e não exigem rima.
Mas bastou que o telefone tocasse,
Que a voz do outro lado dissesse
“Se prepare, você precisa ser forte”,
Para que eu soubesse o que sempre soube:
Que o que acontece já aconteceu.
De fato, minha mãe já havia morrido,
E eu já fora seu filho, em todo o sempre
Que só agora a física explica
E a poesia sempre susteve.
O futuro é, o passado será e o presente foi.
Tudo já aconteceu e ainda acontece e acontecerá.
Minha mãe, portanto, está nascendo, neste momento,
E também está sonhando, seu rosto lindo e adolescente,
Com seu amado, de quem nascerei em breve.
E é inevitável que eu pense, como Wislawa Szymborska,
Que, tão logo começa a ser pronunciada,
A palavra futuro torna-se passado.
Tão logo se morre, começa-se a nascer, por analogia.
E, assim, em algum lugar minha mãe está à minha espera.
E, assim, em algum momento eu saio de suas entranhas.
Noutro, meu pai me faz,
E seus olhos e os dela são os mais felizes.
Noutro ― ainda mais puro ―, ela me acaricia,
Me põe para dormir,
Me faz tomar o remédio, o banho, e comer e rir
E pronunciar as primeiras sílabas.
Noutro ainda, e não mais importante,
Ela me ensina a ler, a escrever,
A combinar as palavras.
Estas, com sua falta, sua imensa presença ― incorpórea.
Muitas pessoas confundem humor e sarcasmo com ironia.
Ironia é isto:
Em setembro, levei minha mãe ao aeroporto,
Para passar um mês em São Paulo com meu irmão.
Em novembro, fui buscá-la, no mesmo aeroporto,
E ela estava dentro de um caixão.
Mas nem mesmo isto é novo nem será,
Pois já aconteceu, está acontecendo e acontecerá.
Tatibitateio minhas primeiras sílabas num futuro passado,
E meu pai e minha mãe riem.
Acabaram de se conhecer, de se amar,
E já me viram nascer
E já se separaram
E já de volta de novo, olhos nos olhos,
Lábios que se tocam.
Costuma-se chamar tempo ao correr dos dias.
Mas tempo é palavra imprecisa.
Chamemos a tudo vida ― o antes, o depois e o agora.
E fiquemos à espera, no entrepalavras,
Do que nos reserva a sintaxe da História.
MAYRANT GALLO. Salvador, 21 de novembro de 2011.
12 comentários:
Senti um misto de nó na garganta e vontade de chorar ao ler seu belo e pungente poema. A vida continuará sempre, e nascemos e morremos num eterno retorno da espécie humana; e nossas particularidades continuarão a existir em outros que virão em nosso lugar, repetindo sonhos e tristezas, perante o olhar impiedoso e poético daquilo que chamam História. Grande abraço.
Confesso que as lágrimas não se rogaram em descer a imprecisão do meu rosto, neste momento que escrevo. E mais uma vez o senhor tempo se faz presente nas engrenages do mundo, desnudados de forma genial por este poema que corta como a mais precisa faca.
Lindo poema, Mayrant, e de uma verdade dolorosa. O comentário da Aero disse tudo o que senti ao te ler. Não tenho mais palavras, apenas lágrimas nos olhos. Abraço.
Não sei se é porque perdi a minha tão cedo, e ela e a palavra mãe fincaram um buraco no meu peito, mas agora, tudo o que leio, choro, choro por mim, por você, por nós todos.
Sinto por você sentir o que eu sinto. Mas é a vida e a gente não escapa. Ninguém escapa ainda que alguns tenham mais tempo antes de abrir a ferida.
Beijos e força, Mayrant!
É isso, amigo. Belíssimo poema. Estou aí contigo. Abr. (carlos barbosa)
O tempo muda o ritmo e as prioridades da nossa vida. E os acontecimentos começam a ser numericamente mais dolorosos do que felizes. Não gosto disso, mas é real e com certeza deve ser, por algum motivo, necessário. E lhe digo, amigo, o inverso é insuportável, como disse Aeronauta.Fique bem e aceite o meu abraço fraterno.
Abigail Bastos
Mayrant,
este certamente foi um dos textos mais belos que você já escreveu... pena que motivado por uma perda tão grande...
Te desejo força e serenidade para superar tudo isso.
Abraço fraternal, meu amigo.
Prezado Mayrant Gallo,
me chamo Adilson Mendes e estou fazendo um artigo sobre a crítica do jovem Glauber Rocha. Lendo o "Século do Cinema", descobri que você participou da pesquisa do livro. Conversando com um outro pesquisador, Mateus Araújo, fiquei sabendo que sua contribuição permitiu a realização de fotografias dos artigos de Glauber Rocha. E por esse motivo lhe escrevo essa mensagem, pois seria de importância capital para minha pesquisa a consulta aos artigos que não entraram na edição do livro. Será que você pode me enviar esses artigos? Imagino que o pedido seja um despropósito, já que faz anos que o livro foi publicado. Mas como não posso ir até Salvador neste momento, corro o risco de passar por um cara de pau.Peço então humildemente essa gentileza e me despeço com um abraço cordial. Adilson Mendes (email: adilsonmendes9@gmail.com)
Mayrant,
Deixei uma mensagem no meu blog para você. Aqui deixo mais um abraço reconfortador.
José Carlos
Mayrant, meu amigo, um belo e doloroso poema. Tributo sincero que comove demais. Aquele abraço. T
lindo!
Belíssimo, Mayrant, muito lindo.
Choro de saudade de meu pai.
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