Muitos livros, leitura e literatura para todos nós!
Cartão: de autoria de A. Café-Gallo (2010).
"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
LEITURAS, 10: COLEÇÃO MISTÉRIO
Vivemos hoje um frenesi pela literatura fantástica, muito embora tal interesse fique restrito quase que exclusivamente às histórias de vampiros e de fantasmas. O fantástico mais sutil e irônico, de Borges, Rulfo, Buzzati, Fuentes, Machado de Assis, Tchekov, Maupassant, Edgard Allan Poe, Oscar Wilde, Gauthier, Kafka, Murilo Rubião, J. J. Veiga e Victor Giudice, permanece cativo de uma fatia específica de leitores, talvez mais refinados. Há ainda os autores esquecidos ou em via de completo desaparecimento, como Saki e W. W. Jacobs, autor do célebre conto A pata do macaco. Seria proveitoso para os leitores mais jovens se uma editora brasileira criasse uma coleção de literatura fantástica que resgatasse esses autores em antologias ou reedições populares, em formato bolso, de algumas de suas principais obras no gênero. Isso já foi feito no Brasil, sem muito êxito ou êxito moderado, e em Portugal, com sucesso. Em solo luso, a Editora Estampa incluiu na coleção Livro B um elenco fortíssimo de autores fantásticos, entre os quais Charles Nodier, Léon Bloy, Ambrose Bierce, Jean Potocki, Nerval, Lovecraft, Balzac, Gauthier, Henry James, Horace Walpole, Fitz James O'Brien, Remy de Gourmont, Marcel Schwob, Hoffmann e Paul Féval. Dos anos 1990 para cá, no Brasil, afora as antologias, das quais a mais popular é a de Flávio Moreira da Costa, Os melhores contos fantásticos (Nova Fronteira, 2006), e a mais criativa a de Bráulio Tavares, Contos fantásticos no labirinto de Borges (Casa da Palavra, 2005), tivemos algumas tentativas mal sucedidas de coleções do gênero. Uma das mais importantes foi a da editora paulista Marco Zero. Em 1994, seus editores projetaram e trouxeram a público a Coleção Mistério. Foram programados cinco títulos, mas acredito que o volume Monsieur Maurice, de Amelia B. Edwards, não chegou a ser publicado, pois jamais o encontrei, nem conheço ninguém que o tenha lido ou o possua. A coleção iniciou-se com O amante fantasma, de Vernon Lee, seguindo-se A casa desabitada, de J. H. Riddell, O fantasma dos Guirs, de Charles Willing Beale, e A bruxa âmbar, de Wilhelm Meinhold, que tem uma história curiosa: tornou-se um livro maldito, porque, uma vez que forjava na sua estrutura um documento histórico do século XII, não foi aceito como ficção, mas como verdade, tanto pelos leitores quanto pela Igreja, que o repudiou. Percebe-se que a coleção enfatizava os tradicionais relatos de fantasma, mas pretendia migrar para outros campos do fantástico, pois, de súbito, desviou-se para a bruxaria com o livro de Meinhold. Outra evidência é o questionário que a editora colocou no volume de Beale, para que o leitor preenchesse e postasse. A questão 7 diz: "A coleção tem cinco livros previstos. Você gostaria que tivesse mais?" Pelo ocorrido, bem poucos se manifestaram favoravelmente, e a coleção gorou.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
MINICONTOS DA "VEREDAS"
Os editores Ana Mello e Marcelo Spalding, também "minicontistas", deram generosamente destaque na Veredas de dezembro aos meus minicontos publicados em Nem mesmo os passarinhos tristes (Rio de Janeiro: Multifoco, 2010). Entrei lá para conferir e agradecer e, para o meu contentamento, li muita coisa boa no gênero miniconto, de autores como: Ana Mello (uma moderna historieta de Natal), Wilson Gorj (a eficiente ironia de sempre), Chico Pascoal (que tem um blogue ótimo: Microrrelatos do Cheeko), Eduardo Cama, Carlos Tijolo e Maria Regina Caetano Soares. Conheçam a Veredas, revista de minicontos e micronarrativas. Além dos textos destes gêneros, publica artigos, livros no formato E-BOOK e aceita colaborações. O link: http://www.veredas.art.br.
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
LEITURAS 9: MODUS OPERANDI
Não sei ao certo o que espero de um poema quando o leio. Como não sei o que encontrarei num conto ou num romance, num filme ou numa peça teatral. Se não fosse assim, eu não diferiria em nada de um simples leitor de revistas e jornais ou de um assíduo espectador de programas de tevê. E é porque só me deparo com o “esperado quando inesperadamente me deparo com ele”, que sou um obstinado leitor de literatura. Retornar a um texto literário, qualquer que seja o gênero, é refazer o instante que o engendrou dentro de nós, trazer de novo à superfície sensível de nossos sentidos aquela “inesperada novidade”. Tornar a ler um poema é reinaugurá-lo, ainda que esta segunda leitura não esteja distante da primeira senão alguns minutos, ou mesmo segundos. E esta reinauguração não é gratuita: promove-a o delicado instante em que nos deparamos com o inesperado, que, no entanto, nos convence, com sua força, de que o esperávamos há séculos e que até “o procurávamos”. Três ou quatro poemas do novo livro de Georgio Rios me causaram este efeito singular quando o li. Não vou falar da “suposta evolução” do poeta, nem da felicidade que se instala no leitor, ao descobrir o quanto o poeta é encantatório. Esta é uma tarefa muito velha e que prefiro deixar à crítica oficial de poesia do nosso tempo, se é que ela existe e é necessária, afinal de contas o que é o poema senão um objeto para sentir e tão somente sentir? Como nestas duas surpresas:
VERDADES
Gosto de tudo que não conheço:
Das cores que não sei
Das fotos que não vi
Dos livros que nunca li
Das coisas que não sei
Dos versos que nunca escrevi.
HOJE É DOMINGO
Esquecer o ofício e o ócio
os orifícios
aquietar os ossos
e lembrar apenas do
óbvio
estamos vivos e
a morte é negócio.
Ambas de GEORGIO RIOS, a quem agradeço por me ter enviado um exemplar do seu Modus operandi (Itabuna: Via Litterarum, 2010).
VERDADES
Gosto de tudo que não conheço:
Das cores que não sei
Das fotos que não vi
Dos livros que nunca li
Das coisas que não sei
Dos versos que nunca escrevi.
HOJE É DOMINGO
Esquecer o ofício e o ócio
os orifícios
aquietar os ossos
e lembrar apenas do
óbvio
estamos vivos e
a morte é negócio.
Ambas de GEORGIO RIOS, a quem agradeço por me ter enviado um exemplar do seu Modus operandi (Itabuna: Via Litterarum, 2010).
domingo, 26 de dezembro de 2010
LEITURAS, 8: NOITE DE MATAR UM HOMEM
Os grandes escritores se fazem em surdina, sem alarde. Dispensam outdoor e autopromoção. Vão como madeira no rio. Seguem com seu estilo, seus assuntos, sua verdade. E não fazem senão pôr a linguagem a serviço destes aspectos. Falo do gaúcho Sérgio Faraco e de seu excelente volume de contos de fronteira Noite de matar um homem. Raramente lemos na literatura brasileira atual um livro de contos tão consistente. Um livro que transpira vida e estilo. Um livro com trechos tão reveladores e tão bem fixados, em palavras simples, de seu meio, e que, no entanto, reverberam, de modo que muito depois da leitura os contos continuam a ecoar. No excepcional "O céu não é tão longe" um homem perde a vida por causa de uma mulher e, enquanto agoniza, transitando para o outro lado, reflete: "Não era tão longe o céu. Que lhe cobrasse a vida chica! Ao menos não a perdia na doença, mas por um corpo dourado de mulher e com o recuerdo daquela tarde na tapera". É, aliás, nos contos de base sexual, como a nos sinalizar que é no sexo que a vida começa e é também ali que ela acaba, que o autor resvala a perfeição. Em "Lá no campo", um rapaz se embola com uma moça na escuridão de um velório, ao passo que dois velhos concluem que isso é a vida. Em "Dois guaxos", um rapaz vai embora de casa não porque anseie partir, mas porque é preciso fugir da beleza da irmã, que acabou de se entregar a um "chiru": "Seus olhos se encheram de lágrimas e ele se ajoelhou, aproximou o rosto do ventre da irmã. Um beijo, e o sexo dela tinha um cheiro delicado, profundo". Em "Bugio amarelo", um sujeito encarregado de proteger a esposa de um amigo acaba cedendo a um apelo terrível, em forma de provocação: "Se tu é mesmo amigo dele, tu me come". O resto é vingança, duelo, lenda em Uruguaiana, Itaqui e Barra do Quaraí. Em "Noite de matar um homem", o relato central do livro, espécie de síntese de todos os demais, dois homens encarregados de matar um terceiro o fazem quase sem querer, doendo, sofrendo mais do que sofreu o morto enquanto agonizava. Claro, porque se viver é difícil, matar também não é fácil. Nos demais contos, Faraco conserva-se em sua coerência de estilo e assunto, de experimentações formais e representação do ambiente de fronteira: "Hombre", "Aventura na sombra", "Travessia", "Adeus aos passarinhos" e outros relatos são tanto revelações humanas quanto mergulhos sem limite no ato de viver. Experiência única, esta, de ler o volume Noite de matar um homem, de Sérgio Faraco, pois são contos que reverberam na mente e nos olhos, como facas afiadas num duelo pela honra e pela vida.
sábado, 25 de dezembro de 2010
PONTOS DE ÔNIBUS E DE LEITURA
Se você gosta de ler e não se importa de esperar muito tempo no ponto pelo "ônibus que não chega nunca", o melhor lugar para morar é Paris. Criação da loja sueca IKEA, esta sala de espera nos faz desejar que o ônibus realmente não venha jamais: livros, sofá, abajur, globo terrestre, bibelôs, mapas e quadro de avisos. O prefeito de Salvador, BA, João Henrique, deveria se mirar neste exemplo e reproduzir por aqui apenas 5%. Bastaria. Quem já foi à estação da Lapa, principal terminal rodoviário urbano de Salvador, conferiu que o ambiente mais parece um refúgio de zumbis depois de uma hecatombe nuclear. E para ler, nem as placas que sinalizam as linhas de ônibus e seus itinerários prestam. Algumas nem existem mais, substituídas por borrões de tinta, pintados à mão por um funcionário mal pago e sem estímulo. Mas há quem goste de Salvador assim mesmo: bem pitoresca!
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
LEITURAS, 7: POEMA EM QUADRINHOS
É um consenso se afirmar que o criador da "graphic novel" é o norte-americano Will Eisner (1917-2005). De fato, a primeira publicação neste formato, que poderíamos traduzir como "romance gráfico", foi Um contrato com Deus, em 1978. Todavia (e é certo que qualquer sentido de organização do mundo ou da realidade mostra-se ao fim tão falho quanto a sua ausência), o Poema em quadrinhos (CosacNaify, 2010), do italiano Dino Buzzati (1906-1972), precede a criação de Eisner em quase dez anos e abarca, sem sombra de dúvida, o conceito de "graphic novel" proposto pelo renomado quadrinista norte-americano.
Como ocorre com os precursores de Kafka, que só depois de Kafka ganharam importância, e Borges foi mais do que feliz em (re)descobri-los, sem Will Eisner e sua conceituação do romance gráfico, esta importante criação de Buzzati passaria à história como uma simples curiosidade no conjunto da obra de um autor que, nas palavras do editor da CosacNaify, não é nem central nem marginal, sua originalidade está em ter inventado um lugar único para si mesmo, sem êmulos nem epígonos.
Poema em quadrinhos retoma e atualiza o mito de Orfeu e Eurídice. Numa época de supremacia da cultura pop e do rock in roll como um frenesi juvenil, o cantor Orfi desce aos infernos em busca de sua amada Eura, sombra entrevista por trás da vidraça de uma janela. Seu nome, além de uma redução de Eurídice, sugere uma corruptela de "aura": brisa, alento, aragem, sopro, o caldo da poesia e o éter do poeta. É um poema porque cunhado em versos e porque a linguagem se volta para si mesma, mas também é uma narrativa e igualmente uma narrativa gráfica, desenhada pelo próprio punho de Dino Buzzati, que alegava ter mais talento para o desenho e a pintura do que para a literatura, muito embora, por causa do êxito de seus livros, tornou-se para os críticos "um escritor que também desenhava e pintava".
Poema em quadrinhos é maravilhoso! É literatura e é HQ, é pintura e é cinema, os quatro gêneros amalgamados de uma forma tão coesa e criativa, que só podemos acreditar que alguns artistas são, na Terra, a parte humana de Deus. Em 1969, quando o publicou, Buzzati estava sozinho neste norte tão comum hoje em dia entre nós, sem saber que com ele inaugurava um artefato novo, responsável atualmente pela elevação dos quadrinhos ao patamar de obra de arte. Dizia ele, como se precisasse se desculpar da falta cometida junto aos seus críticos e leitores: "Acontece na vida de fazermos coisas de que gostamos sem restrições, coisas que parecem vir de nossas entranhas. Poema em quadrinhos é, para mim, uma destas, como O deserto dos tártaros, como Um amor".
Como conclusão, e porque é quase Natal, no poema de Buzzati nos deparamos com trechos assim:
Vocé se recorda quando, tarde da noite,
diante do portão da sua casa,
a lua se deitando por trás dos telhados de Milão,
o amigo lhe dizia: não é espantoso tudo isto,
a vida o trabalho o dinheiro o sucesso o amor?
Você respondia que sim, sim.
E no fundo de tudo a morte?
Não seria melhor dar um tiro em si mesmo?
Você respondia que sim, sim, não entendia
que esta angústia já era a beleza, a luz,
o sal da vida. (DINO BUZZATI)
A todos os leitores do Não Leia!, especialmente Bípede Falante, Carlos Barbosa, Ianice Gallo, Lidiane Nunes, Mônica Menezes, Patrícia Borges, Renata Belmonte e Wilson Gorj, que gentilmente me escreveram, me desejando um feliz Natal.
Como ocorre com os precursores de Kafka, que só depois de Kafka ganharam importância, e Borges foi mais do que feliz em (re)descobri-los, sem Will Eisner e sua conceituação do romance gráfico, esta importante criação de Buzzati passaria à história como uma simples curiosidade no conjunto da obra de um autor que, nas palavras do editor da CosacNaify, não é nem central nem marginal, sua originalidade está em ter inventado um lugar único para si mesmo, sem êmulos nem epígonos.
Poema em quadrinhos retoma e atualiza o mito de Orfeu e Eurídice. Numa época de supremacia da cultura pop e do rock in roll como um frenesi juvenil, o cantor Orfi desce aos infernos em busca de sua amada Eura, sombra entrevista por trás da vidraça de uma janela. Seu nome, além de uma redução de Eurídice, sugere uma corruptela de "aura": brisa, alento, aragem, sopro, o caldo da poesia e o éter do poeta. É um poema porque cunhado em versos e porque a linguagem se volta para si mesma, mas também é uma narrativa e igualmente uma narrativa gráfica, desenhada pelo próprio punho de Dino Buzzati, que alegava ter mais talento para o desenho e a pintura do que para a literatura, muito embora, por causa do êxito de seus livros, tornou-se para os críticos "um escritor que também desenhava e pintava".
Poema em quadrinhos é maravilhoso! É literatura e é HQ, é pintura e é cinema, os quatro gêneros amalgamados de uma forma tão coesa e criativa, que só podemos acreditar que alguns artistas são, na Terra, a parte humana de Deus. Em 1969, quando o publicou, Buzzati estava sozinho neste norte tão comum hoje em dia entre nós, sem saber que com ele inaugurava um artefato novo, responsável atualmente pela elevação dos quadrinhos ao patamar de obra de arte. Dizia ele, como se precisasse se desculpar da falta cometida junto aos seus críticos e leitores: "Acontece na vida de fazermos coisas de que gostamos sem restrições, coisas que parecem vir de nossas entranhas. Poema em quadrinhos é, para mim, uma destas, como O deserto dos tártaros, como Um amor".
Como conclusão, e porque é quase Natal, no poema de Buzzati nos deparamos com trechos assim:
Vocé se recorda quando, tarde da noite,
diante do portão da sua casa,
a lua se deitando por trás dos telhados de Milão,
o amigo lhe dizia: não é espantoso tudo isto,
a vida o trabalho o dinheiro o sucesso o amor?
Você respondia que sim, sim.
E no fundo de tudo a morte?
Não seria melhor dar um tiro em si mesmo?
Você respondia que sim, sim, não entendia
que esta angústia já era a beleza, a luz,
o sal da vida. (DINO BUZZATI)
A todos os leitores do Não Leia!, especialmente Bípede Falante, Carlos Barbosa, Ianice Gallo, Lidiane Nunes, Mônica Menezes, Patrícia Borges, Renata Belmonte e Wilson Gorj, que gentilmente me escreveram, me desejando um feliz Natal.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
LEITURAS, 6: CLARA DA NOITE
O traço cômico do espanhol Jordi Bernet se mescla à verve de Carlos Trillo e Eduardo Maicas, numa HQ que confere humor e crítica social ao contidiano de Clara, uma prostituta de rua. Perambulando pelas esquinas de uma grande cidade espanhola (Madri, provavelmente), Clara se envolve comercialmente com os mais estranhos tipos: um anão envergonhado, dois gângsteres rivais, um marido que depois de tantos anos de casado já esqueceu como se faz a coisa, um rapazinho em sua primeira vez, um padre tomado de fraqueza e esquecido de sua condição de celibatário, um professor carente de realidade e cheio de sonhos com suas alunas, um cego que não acha o caminho e até um técnico de futebol que resolve ministrar sexo para seus comandados, que, claro, com as ações de Clara, não tiveram nenhum êxito em campo. As histórias, de duas a três páginas, alternam comicidade, dor, desilusão e melancolia, pois, além de se defender nas ruas, Clara tem de criar seu filho e, como era de se esperar, sofre o preconceito e a intolerância das "mulheres direitas" do bairro onde mora. O tom irônico da série chega ao auge na história em que a protagonista, depois de estuprada por um desconhecido, volta-se para ele e diz, com estoicismo: "Sim, são trezentos... Mais cem pelo material estragado". Quadrinhos de arte de primeiríssima qualidade.
sábado, 18 de dezembro de 2010
MINICONTOS INSPIRADORES
Amanhã, vou ministrar em Itaparica uma oficina de criação de minicontos que tem como base os textos do meu livro Nem mesmo os passarinhos tristes. Mas levarei também minicontos de outros autores que admiro e que partilho aqui com os leitores do Não leia! O primeiro conto, do Wilson Gorj, não tem título, e o de Dalton Trevisan é o número 11 de um total de 111, que ele chama de "ais".
Cansado de tirar o filho da cadeia, o pai comprometeu-se, de uma vez por todas, em pôr aquele delinquente na linha!
O maquinista não viu o corpo amarrado nos trilhos.
WILSON GORJ: Sem contos longos
LEMBRANÇAS DE VIAGEM
Ele não se lembra bem como aconteceu.
Perdeu o controle do carro e saiu da estrada.
Assim como quem sobe a calçada para cumprimentar pessoas, o carro e ele tocaram árvores, uma depois da outra, até se quedarem, cada qual em seu cantinho de mato.
Não tardou muito e os outros surgiram no local do acidente. Primeiro, curiosos; depois, sorrateiros.
Ele os viu, um a um, revirarem o carro e levarem seus pertences. Assistiu depenarem seu próprio corpo ― não podia se mexer, não podia falar. Depois o deixaram lá, gaveta revirada, e foram cuidar de suas vidas.
Disso ele se lembra bem.
CARLOS BARBOSA: A segunda sombra
11.
― Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz.
― ...
― Menino beija menina.
― Você é gozada, cara.
― ...
― Pensa que elas deixam?
DALTON TREVISAN: 111 ais
SNAP
Algo instintivo, intestinal, me levou a empunhar esta arma, agora apontada para a sua cabeça. Você tem filhos, sim, eu nunca os tive. Explosão seca de metal incandescente.
PATRICK BROCK: Textorama
O REENCONTRO
Um homem que o Sr. K. não via há muito o saudou com as palavras: “O senhor não mudou nada”. “Oh!”, fez o Sr. K., empalidecendo.
BERTOLT BRECHT: Histórias do Sr. Keuner
MAU NEGÓCIO
Começaram a tirar o pelo do porco para depois o comerem. Mesmo antes de morrer o animal murmurou: Eu-não-sou-um-porco-sou-um-homem. O casal ajoelhou-se e pôs-se a chorar.
― Este porco fala. Como seria rentável!
GONÇALO M. TAVARES: O senhor Brecht
O MILAGRE DOS COPOS
1
Tarde da noite, no bar quase vazio, dois amigos conversam.
― Pois é isso: eu e sua mulher nos amamos.
Susto. Incredulidade. Depois:
― E vocês, vocês...?
2
O garçom a recolher os cacos.
OS FUNERAIS
Foi somente quando se deu conta de que não podia mais ser pai e já não era mais filho que ele foi feliz.
MOMENTO
Tarde... Nenhuma vontade, nenhum sonho... O dia acabando, o sol morrendo... Eu também morrendo. A última cena de Encontros e desencontros me passando por dentro...
MAYRANT GALLO: Nem mesmo os passarinhos tristes
HISTÓRIA EDIFICANTE
Era uma vez duas pulguinhas que passaram a vida inteira economizando e compraram um cachorro só para elas.
MÁRIO QUINTANA: Porta giratória
IMAGEM: cena do filme Rumble fish (1983), de Francis Ford Coppola
Cansado de tirar o filho da cadeia, o pai comprometeu-se, de uma vez por todas, em pôr aquele delinquente na linha!
O maquinista não viu o corpo amarrado nos trilhos.
WILSON GORJ: Sem contos longos
LEMBRANÇAS DE VIAGEM
Ele não se lembra bem como aconteceu.
Perdeu o controle do carro e saiu da estrada.
Assim como quem sobe a calçada para cumprimentar pessoas, o carro e ele tocaram árvores, uma depois da outra, até se quedarem, cada qual em seu cantinho de mato.
Não tardou muito e os outros surgiram no local do acidente. Primeiro, curiosos; depois, sorrateiros.
Ele os viu, um a um, revirarem o carro e levarem seus pertences. Assistiu depenarem seu próprio corpo ― não podia se mexer, não podia falar. Depois o deixaram lá, gaveta revirada, e foram cuidar de suas vidas.
Disso ele se lembra bem.
CARLOS BARBOSA: A segunda sombra
11.
― Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz.
― ...
― Menino beija menina.
― Você é gozada, cara.
― ...
― Pensa que elas deixam?
DALTON TREVISAN: 111 ais
SNAP
Algo instintivo, intestinal, me levou a empunhar esta arma, agora apontada para a sua cabeça. Você tem filhos, sim, eu nunca os tive. Explosão seca de metal incandescente.
PATRICK BROCK: Textorama
O REENCONTRO
Um homem que o Sr. K. não via há muito o saudou com as palavras: “O senhor não mudou nada”. “Oh!”, fez o Sr. K., empalidecendo.
BERTOLT BRECHT: Histórias do Sr. Keuner
MAU NEGÓCIO
Começaram a tirar o pelo do porco para depois o comerem. Mesmo antes de morrer o animal murmurou: Eu-não-sou-um-porco-sou-um-homem. O casal ajoelhou-se e pôs-se a chorar.
― Este porco fala. Como seria rentável!
GONÇALO M. TAVARES: O senhor Brecht
O MILAGRE DOS COPOS
1
Tarde da noite, no bar quase vazio, dois amigos conversam.
― Pois é isso: eu e sua mulher nos amamos.
Susto. Incredulidade. Depois:
― E vocês, vocês...?
2
O garçom a recolher os cacos.
OS FUNERAIS
Foi somente quando se deu conta de que não podia mais ser pai e já não era mais filho que ele foi feliz.
MOMENTO
Tarde... Nenhuma vontade, nenhum sonho... O dia acabando, o sol morrendo... Eu também morrendo. A última cena de Encontros e desencontros me passando por dentro...
MAYRANT GALLO: Nem mesmo os passarinhos tristes
HISTÓRIA EDIFICANTE
Era uma vez duas pulguinhas que passaram a vida inteira economizando e compraram um cachorro só para elas.
MÁRIO QUINTANA: Porta giratória
IMAGEM: cena do filme Rumble fish (1983), de Francis Ford Coppola
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