"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 2 de maio de 2010

VÁ E VEJA, 7: HELL

"A maioria das pessoas é outra pessoa. Seus pensamentos são as opiniões de outra pessoa, suas vidas uma mímica, suas paixões uma citação." (OSCAR WILDE)

Esta é, ironicamente, uma citação perfeita para se assistir a Hell (2009), de Bruno Chiche, baseado no livro de Lolita Pille, que assina com ele o roteiro.

O cenário é a Paris contemporânea. O assunto, o tédio. Os protagonistas, os jovens burgueses destituídos de sonhos, pois têm tudo e, assim, só lhes resta trepar e se drogar, não importa com quem nem como.

O foco narrativo acompanha o dia a dia de Hell, filha única de um casamento esfacelado. Entremeados na trama, há aspectos que esclarecem e definem a psicologia da personagem, como a cena em que, ao chegar tarde da noite em casa e encontrar a mãe ainda acordada, ela pergunta: "Esperando por mim?" "Não, pelo seu pai."

Hell também se autodefine, niilisticamente. Quando um cara que ela acabou de conhecer lhe pergunta, num bar, o que ela faz além de chorar nas ruas (referência a uma cena anterior, primeiro encontro de ambos) e beber nos bares, ela responde: "Também choro nos bares".

Uma das chaves do filme está na sequência em que Hell, convocada a dar uma canja vocal num bar, canta uma cantiga infantil, como se fosse uma garotinha, os olhos marejados:

Era uma vez um barquinho
Que nun, nun, nunca navegou
Oê, oê; oê, oê, marinheiro
Marinheiro navega sobre as ondas.

Ele fez uma longa viagem
No mar Me, Me, Mediterrâneo
Oê, oê; oê, oê, marinheiro
Marinheiro navega sobre as ondas.

O resto é noite, cidade, sexo e cocaína. O espírito noir foi no passado uma exclusividade de seres à margem e envolvidos em crimes. Hoje é a própria vida, comum e cotidiana.

Mas o que isso tem a ver com a citação de Wilde? Bem, fica evidente no filme que Hell não consegue ser ela própria. Desprezada pelos pais e sufocada pelo mundo, ela só pode ser outra pessoa, o modelo fútil e vazio que está à sua volta. O modelo que o dinheiro, combustível em profusão, move em direção ao sexo fácil e sem sentimentos, à cocaína como refúgio e aos atos gratuitos, esboços tênues de uma individualidade perdida.

2 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Uma pena não ter me respondido, abraço

Bípede Falante disse...

Nunca dei crédito para Hell. Pensei que fosse bobagem. Agora, vou ter de conferir :)