
Offutt reúne tudo o que se espera de um contista nato: fluência, trama envolvente, movimentação no tempo e no espaço, alternância de narração, descrição e diálogo, uma linguagem ao mesmo tempo funcional e poética, com rasgos filosóficos, representação relevante da vida e do mundo, reflexão e, às vezes, ciframento, desfechos condizentes ou conflitantes com a trama, atmosfera, mistério e ironia. Poucos foram os contistas que li nos dez últimos anos (e dos quais antes jamais ouvira falar) que me deixaram assim tão empolgado. Na verdade, só me lembro de dois: o sergipano Antônio Carlos Viana e a italiana Dacia Maraini, com o livro Meu marido (Berlendis & Vertecchia, 2001).
Dois contos se rivalizam como as obras-primas do livro de Offutt, que também é romancista e escreveu um livro de memórias: Além das montanhas, que dá título ao volume, e Moscou, no Idaho. Em ambos, a trama é só um pretexto para uma imersão maior, sobre a existência. O primeiro narra a história de Gerald, que é encarregado pelos quatro cunhados de ir buscar o outro irmão deles, Ory, que levou um tiro e está hospitalizado numa cidade distante. O segundo enfoca o dia-a-dia de dois ex-presidiários no único emprego que, ao sair da cadeia, encontraram: coveiros. Nos dois contos, e mais fortemente no segundo, prevalecem as reflexões sobre a vida a partir do seu fato mais corriqueiro: a morte. O diálogo entre os dois coveiros chega a um nível tal, que um deles começa a achar que a prisão era melhor, mais digna, o verdadeiro lar, o lugar onde se alcançam as lições definitivas: “A maior coisa que aprendi foi como conseguir que as pessoas me deixassem sozinho. Depois foi como dormir. Antes, nunca dormia bem; hoje, consigo dormir catorze horas seguidas.” E o outro retruca: “Só isso?” Não: “Também tive certeza absoluta de que gosto de mulheres”. Muitos são os trechos a destacar, como este, mais filosófico: “Ocorreu-lhe que o tempo não se move para a frente, como ele sempre pensara. São as pessoas que se movem pelo tempo”. Ou este outro, mais devastador: “Na prisão, descobrira que as leis eram feitas para proteger as pessoas que faziam as leis”.
De uma linhagem de escritores que não pretendem entreter, mas concentrar o leitor, fazê-lo evoluir do embotamento para a consciência, Offutt assim conclui seu relato: “Tilden se perguntou quando encontraria uma mulher, um trabalho de que gostasse, uma cidade onde quisesse ficar. Lá em cima, a Via Láctea fazia uma nevasca de estrelas no céu. Não havia nem uma cerca ou muro à vista”. Exílio existencial, liberdade de ação: destino. Eis a fórmula, da literatura para a vida.
Um comentário:
Eis o livro. Descrição empolgante. Tudo ali, no tocante ao manejo literário, verdadeiramente essencial.Posso levar uma vida, mas lerei boa parte desse seleto grupo. Aquele abraço.
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