Que a arte se alimenta da arte, não há dúvida. No romance, no conto ou na poesia (e mesmo no cinema ou na pintura), estamos sempre criando de um marco primeiro, pessoal, e do que já conhecemos, aquilo que T. S. Eliot chamava "tradição". Se o artista o faz consciente ou inconscientemente, não importa. Está ali a referência, ou citação, ou intertextualidade, o que nos permite, lendo um texto, lembrarmo-nos fortemente de outro. Foi o que me ocorreu quando li pela primeira vez o poema Alouette, abaixo. Foi como se lesse duplamente, ou imbricadamente, dois poemas, dois poetas: Gelman e Rilke. Sem me prontificar a fazer nenhum juízo de valor, mesmo porque prefiro saboreá-los a julgá-los, penso que os dois textos guardam certo parentesco: são primos distantes de uma mesma verdade, de um mesmo assombro. O que houve entre eles não nos interessa.
ALOUETTE
Bendita a mão que me cortasse os olhos
para que eu não visse nada além de ti.
E se me cortassem a língua, seu silêncio
cantaria pleno de ti.
E se me cortassem as mãos, sua memória
saberia acariciar-te.
E se me cortassem as pernas, seu vazio
me levaria a ti.
E se depois me matassem
ainda restaria toda a minha dor de ti.
JUAN GELMAN, poeta argentino nascido em 1930 e aqui traduzido por Eric Nepomuceno. Do volume Amor que serena, termina? (Rio de Janeiro: Record, 2001).
Apaga-me os olhos: eu posso ver-te!
Fecha-me os ouvidos: eu posso ouvir-te!
E sem pés posso ir ao teu encontro
e mesmo sem boca eu posso chamar-te!
Arranca-me os braços, e eu te seguro
com o coração, como com minhas mãos.
Pára meu coração, e em mim o cérebro
há de pulsar; e se puseres fogo
em meu cérebro, eu te trarei no sangue.
RAINER MARIA RILKE (1875-1926). Poeta tcheco de expressão alemã, traduzido aqui por Geir Campos, para a segunda edição de O livro das horas (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994).
Imagem: Irène Jacob, em A fraternidade é vermelha (1994), de Krzysztof Kieslowski.
ALOUETTE
Bendita a mão que me cortasse os olhos
para que eu não visse nada além de ti.
E se me cortassem a língua, seu silêncio
cantaria pleno de ti.
E se me cortassem as mãos, sua memória
saberia acariciar-te.
E se me cortassem as pernas, seu vazio
me levaria a ti.
E se depois me matassem
ainda restaria toda a minha dor de ti.
JUAN GELMAN, poeta argentino nascido em 1930 e aqui traduzido por Eric Nepomuceno. Do volume Amor que serena, termina? (Rio de Janeiro: Record, 2001).
Apaga-me os olhos: eu posso ver-te!
Fecha-me os ouvidos: eu posso ouvir-te!
E sem pés posso ir ao teu encontro
e mesmo sem boca eu posso chamar-te!
Arranca-me os braços, e eu te seguro
com o coração, como com minhas mãos.
Pára meu coração, e em mim o cérebro
há de pulsar; e se puseres fogo
em meu cérebro, eu te trarei no sangue.
RAINER MARIA RILKE (1875-1926). Poeta tcheco de expressão alemã, traduzido aqui por Geir Campos, para a segunda edição de O livro das horas (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994).
Imagem: Irène Jacob, em A fraternidade é vermelha (1994), de Krzysztof Kieslowski.
5 comentários:
"Notícias de um mundo menos úmido". Meu exílio é aí. Aquele abraço.
P.S: Gelman, Rilke, Kieslowski...
Irmandade plena.Um belo duo, poemas que abrem os olhos da alma!!!
Este diálogo entre as artes é maravilhoso!
Um grande abraço.
Coincidências, como são bem vindas! E aqui fica meu aplauso (não para os poemas, que é óbvio) p/vc, que teve o estalo divino da captura.
Acredito nessas conexões e adorei a que vc fez. Bjs. :)
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