Carmem, de Prosper Mérimée, é uma das minhas novelas favoritas. A cada dois ou três anos a releio. Depois assisto à sua mais notória adaptação para o cinema, com Rita Hayworth e Glenn Ford, e direção de Charles Vidor. Da última vez que a reli, me lembrei de outro livro: Carmen ou o desencontro dos sexos nos anos 80, do alemão Wolf Wondratschek, um longo poema narrativo com ironias assim: "A gente nem tem tempo de berrar com a própria boca". Bem, fui à estante pegá-lo. Para o meu espanto, não o achei na seção de literatura de língua alemã. Ou eu o pegara e pusera em outro nicho ou (o que eu temia fosse a mais pura verdade) levara-o ao sebo para, com outros, trocá-lo por algum livro de que necessitara em algum momento. Já fiz muito isso, especialmente na época da graduação e do mestrado. Decidi ir direto ao sebo e, sem nenhuma dificuldade, lá o achei, o mesmo exemplar. Realmente, eu o envolvera numa troca. Mas havia ainda uma outra surpresa, redentora: na terceira capa, eu havia rabiscado a lápis um poema, do qual já não me lembrava e nem tinha cópia. Um poema perdido recuperado por um ato de releitura. Depois deste episódio, não há como não acreditar que, de fato, reler um livro constitui sempre uma nova descoberta: do texto, do autor e de outras coisas.
"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry
sábado, 26 de janeiro de 2013
domingo, 20 de janeiro de 2013
LEITURAS, 21: PRÉ-TCHÉKHOV
Um mês no campo (1850) é a mais importante peça teatral de Ivan
Turgueniev (1818-1883) e uma obra-prima do gênero, na Rússia antes do
aparecimento das revolucionárias peças de Anton Tchékhov (1860-1904). É consenso se afirmar
que esta obra de Turgueniev influenciou Tchékhov, como retrato da burguesia
campesina, frequentemente representada por ele como reduto de tédio, desespero
e melancolia. Estão lá os tipos indefectíveis de sua dramaturgia: o médico, o rico proprietário rural, sua esposa entediada, os preceptores, os agregados,
visitantes, vizinhos e alguém especial, motor da ação, que chega para romper o
equilíbrio e desfazer a harmonia. Tio
Vânia não foge a este padrão e se tornou, talvez, a mais cultuada peça de
Tchékhov. A única edição no Brasil de Um
mês no campo coube à editora Hucitec, em 1990, com recursos da Secretaria
de Cultura de Estado de São Paulo, em tradução de Fernando Peixoto e José Celso
Martinez. A edição é bonita, bem cuidada, com mancha gráfica confortável e
fontes graúdas que facilitam a leitura, mas apresenta alguns erros grosseiros
de revisão. Mesmo assim, é leitura obrigatória para os apreciadores da
literatura russa.
Publicado originalmente na Verbo 21, na coluna Crítica Rasteira, em dezembro de 2012.
domingo, 13 de janeiro de 2013
LEITURAS, 20: BARATAS E MULHERES
O
Brasil é um país de extremos em quase tudo. E esta assertiva, infelizmente,
aplica-se também à literatura, que, de um lado, tem Graciliano e Drummond e, do
outro, os intragáveis autores de moda e momento. O que vem pelo meio pouco interessa,
porque nem é linguagem em modo radical, nem diversão em estado bruto. É por isso
que a literatura brasileira talvez seja a única, no mundo, cujo cânone encolhe
a cada ano, em lugar de aumentar. Posto isto, eu diria que a novela Só as mulheres e as baratas sobreviverão,
de Claudia Tajes, é, ao mesmo tempo, literatura, porque reflexiva e irônica, e
entretenimento, por constituir uma história original, despretensiosa e cheia de humor. O
argumento é simples: num sábado, uma mulher, prestes a sair para um encontro,
abre o armário para apanhar seu melhor vestido e, de súbito, depara-se com uma
enorme barata. Apavorada, fecha o armário e, só de toalha, não faz mais coisa alguma.
Fica ali, impotente, frágil, incapaz de reagir diante da presença daquele
inseto hediondo. Só lhe resta conversar com a barata, contar-lhe toda a sua
história, enquanto tenta, pelo telefone, chamar alguém que lhe faça o favor de
varrer de sua noite de sábado aquele obstáculo. O ápice da narrativa se dá
quando a protagonista telefona para a sua empregada, e esta, sem nenhuma
afetação, com a maior naturalidade, recomenda-lhe a leitura de Clarice
Lispector... Depois dizem que o povo não lê, nem gosta de ler. Será? Ou isso é desculpa de político indolente? A reflexão
final da narradora, ao comparar mulheres e baratas, inspirada na ideia de que estas sobrevivem a tudo, é: “Eu não me espantaria se,
depois do estouro da bomba, mulheres viessem em hordas de todas as partes para
ajeitar a bagunça”. Nem eu.
Publicado originalmente na Verbo 21, na coluna Crítica Rasteira, em dezembro de 2012.
domingo, 6 de janeiro de 2013
LEITURAS, 19: MULHERES
O livro As baianas (Casarão do Verbo, 2012) surgiu de uma conversa de
Elieser Cesar comigo, durante a Bienal do Livro da Bahia de 2009, sobre o livro
As cariocas, de Sérgio Porto.
Portanto, algum tempo antes do seriado exibido pela Rede Globo e que acabou se
ramificando em outros, de qualidade duvidosa. Bem, o projeto vingou,
conseguiu editor antes mesmo de ser gerado e, escolhidos os seis autores, os
contos foram escritos e, já em livro, experimentaram um relativo êxito
doméstico. O que não sabíamos era que, em 2006, um artista japonês publicara em
seu país a obra Mulheres (Zarabatana
Books, 2007), igualmente seis narrativas cujas protagonistas são mulheres. Ou,
se preferirmos, seis estudos gráficos sobre a essência do feminino num Japão
pós-guerra, precisamente na década de 1960, quando a reconstrução do país era evidente,
e a modernização, uma consequência inevitável, como a liberdade sexual. É neste
contexto que o gekigá (“geki”, drama,
e “gá”, ilustrado) de Yoshihiro Tatsumi se desenvolve e coloca as mulheres em
luta consigo mesmas e com o mundo à sua volta. As seis narrativas gráficas,
simples e com exatas pinceladas de realismo (o autor não se perde em excessos),
aproximam-se muito do que os autores de As
baianas se propuseram a escrever, inspirados em Sérgio Porto. Se
na intitulação dos contos, optamos por seguir o modelo sintético do escritor
carioca (A guerreira da Lapinha, A santinha da Ribeira, A putinha da Vitória etc.), o
quadrinista japonês preferiu, no geral, a forma analítica e assim nomeou seus
contos: A mulher determinada, A mulher que namorava, A mulher que cuidava de um homem, A mulher lasciva, A mulher que murmurava, A
mulher que pescava. O gibi de Yoshihiro Tatsumi, um veterano dos quadrinhos
japoneses, é uma excelente porta de entrada para uma arte séria e profunda, que
começou há muito tempo, no século XIX, quando o insigne gravador Hokusai
(1760-1849) decidiu soltar a mão e criar “de maneira inconsequente”. De seu
ato, provêm o “mangá” e o “gekigá”: o primeiro, mais ingênuo e romântico; o
segundo, mais sisudo e realista, representando dramas humanos com a relativa
complexidade psicológica que só a literatura e o cinema alcançaram.
sexta-feira, 4 de janeiro de 2013
A VIDA DENTRO DOS LIVROS, 1
Escrito no verso deste postal, postado de Paris para Salvador em 30 de setembro de 1982 e achado dentro de um livro num sebo da capital baiana: "Tia S., temos feito, conforme disse anteriormente, ótima viagem. Beijo [nos] meninos, abração [em] L. [e] tio J. Paris é bonita, o Rio é mais; aqui não tem mar. Dia 5 iremos para a Suíça, o V. vem de N. Y. para se encontrar conosco. Beijo, E.". Mais de trinta anos se passaram, talvez um ou outro personagem já não exista, o mundo deu voltas, mudaram-se os costumes, novos hábitos foram introduzidos, mas as palavras, vivas como quando escritas, congelaram num presente contínuo aquele momento de redação do postal, bem como as circunstâncias da viagem, a lembrança dos parentes distantes, a perspectiva de continuidade, agora em outro país, e a presença iminente do parente ou amigo, que chegará de longe para se juntar aos viajantes. E isso tudo num simples pedaço de papel cartão de 15x10cm, com carimbo do correio francês, dois selos ordinários (0,05 e 2,60 francos) e que, de propósito, pela mão desastrosa de um sujeito insensível, ou por acaso, poderia já não existir. Objetos como este guardam a memória do mundo e proporcionam aos flagrantes pretéritos da vida conservar todo o seu frescor.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
MODELO DE GENEROSIDADE
A generosidade perdeu o seu arquétipo. Morreu hoje, pela manhã, o historiador Ubiratan Castro de Araújo, diretor geral da Fundação Pedro Calmon, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da UFBA, e membro da Acadêmia de Letras da Bahia. Conheci o prof. Ubiratan em 2008, quando cheguei para trabalhar na FPC. Desde então, aprendi com ele muitas lições, mas a maior de todas foi a de que ainda existe, neste mundo, generosidade sem intenções de crédito e débito. Ele era generoso porque era generoso, e um humanista. Um ótimo exemplo aconteceu em setembro, não por acaso o meu último encontro com ele. Eu estava em minha sala, trabalhando, e recebi o recado de que ele queria falar comigo. Subi, fui recebido em sua sala, ele me cumprimentou, alegre e empolgado como sempre, e foi logo perguntando como estava a edição do livro O automóvel, conto de Herberto Sales que a FPC e a editora Casarão do Verbo publicaram em dezembro, na coleção Estante de Bolso. Falei que a digitação estava pronta, em fase de revisão, e que em breve eu montaria o original para enviar à editora, onde se daria a editoração. Depois, acrescentei que, até a impressão, todo o processo consumiria em torno de dois meses e que, sendo assim, dificilmente cumpriríamos o cronograma, para lançamento em novembro. Pacientemente, e com humildade, ele respondeu que não era preciso pressa, que aprontássemos o livro sem agitação e o lançássemos em dezembro. Foi a última vez que nos encontramos, e esta é, sem dúvida, uma cena poderosa, que revela o quanto o prof. Ubiratan era generoso e humilde. Ele não viu o lançamento de O automóvel e já não vê as cores deste mundo, mas continuará existindo para todos aqueles que com ele conviveram e que aprenderam, com sua forma cortês de lidar com as situações mais corriqueiras ou extremas, que a dimensão da sabedoria de uma pessoa tem a medida de um gesto simples, sem soberba.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
POETAS DA PSEUDOINFORMAÇÃO
A atriz preferida de meu pai era Ava Gardner.
Ele não perdia um filme da beldade americana, e isso causava em
minha mãe certo rasgo de ciúme, a ponto de ela sempre se referir à
moça num inconfundível tom de desprezo. Um amigo, apreciador de
filmes antigos, sente-se muito mais feliz se a película vier
encabeçada pela saudosa Rita Hayworth. Também tenho lá minhas
preferências, mas procuro não destacar a beleza física do talento
de representar, que, no fundo, é muito mais importante. Mas a
verdade é que esta inclinação, ou fraqueza, que muitas pessoas têm
para se deter diante de um rosto bonito leva-as, às vezes, a
incorrer num certo mau hábito, bem comum em nosso tempo: a vontade
de ser a todo custo o que dificilmente se pode alcançar, que Machado
de Assis tão bem ilustrou em Um homem célebre.
Semanas atrás, ao mexer num monte de livros
que recebi de autores pouco considerados, achei um volume de poemas
dedicados a mulheres famosas, embora não especificamente por sua
beleza. Em meio a fotos e breves textos biográficos, lá estavam
alguns dos poemas mais horrendos que já li. E pior: a foto de uma
das mulheres, a atriz Maria Schneider (1952-2011), não correspondia
à mesma, era de outra pessoa; de uma homônima cantora de jazz, na
verdade. Como conheço a atriz razoavelmente bem, por todos os seus
filmes a que assisti, e guardando ela ainda certa popularidade por
causa do polêmico filme de Bernardo Bertolucci, em que contracena
com Marlon Brando, O último tango em Paris (1972), aquele
erro grosseiro me chocou. E, com meus botões, me perguntei como
seria possível que um poeta, por menor que fosse, tivesse cometido
tamanho disparate: escrito um poema exaltando uma atriz que ele mal
conhecia, tanto que lhe atribui uma foto que não é dela. A resposta
é simples: o mau hábito de se querer ser o que não se é, que,
mesclado às facilidades da internet (a fonte de pesquisa do autor
foi o famigerado Wikipédia), eleva o sujeito a uma altura que lhe é
indevida.
No entanto, muito mais que isso, nosso poeta
carece de senso crítico, o que, diga-se de passagem, só se obtém
com sólida educação formal e leitura. Se, numa sociedade, ambas
fracassam (não há nem educação formal de alta qualidade, nem
leitura, porque, grosso modo, a educação atual não educa o sujeito
para ler), os poetas acabam por se tornar pseudopoetas, acríticos,
vaidosos e entontecidos pelas possibilidades que a tecnologia oferece
e nas quais, não raramente, não se deve confiar. Um poeta, para ser
grande e ecoar, precisa, antes de tudo, de talento e de uma robusta
formação educacional e intelectual, de modo que, sem percalços,
angarie credibilidade e, por fim, devoção. Em duas palavras: Castro
Alves.
Publicado originalmente no Correio da Bahia, 29/12/2012.
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