"Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo." Antoine de Saint-Exupéry

domingo, 20 de março de 2011

LEITURAS, 13: MEU TIPO DE GAROTA

De vez em quando lemos um livro que não conhecíamos, de um autor que não conhecíamos, e saímos da leitura renovados para a vida. Obviamente que, para que isso aconteça, é preciso que o livro desperte a nossa sensibilidade tanto pelo assunto abordado quanto pela forma, compreendida esta como a soma de quatro aspectos básicos: estrutura, tom, ritmo e linguagem.

A história de Meu tipo de garota, romance do escritor indiano, mais precisamente bengali, Buddhadeva Bose, é simples e universal. Um trem é obrigado a parar por causa de um acidente na linha. Quatro homens respeitáveis e desconhecidos entre si são obrigados a dividir a sala de espera da estação, por seis horas de uma noite fria, enquanto a ferrovia é desobstruída para o comboio seguir viagem.

Estão ali, no frio, bebendo café e obrigados a entabular algum tipo de conversa para que o silêncio não os oprima, e o tempo não demore ainda mais a se escoar, quando, de repente, a porta se abre, e um jovem casal surge à soleira. Os dois examinam a sala vagamente e decidem não entrar.

A visão do casal desperta nos homens um sentimento novo, de compreensão e derrota perante a vida. Eles também foram jovens e conheceram aquele momento de recém-casados e apaixonados. Um momento tão sublime que dispensa o conforto de uma sala mais ou menos aconchegante em favor da solidão a dois, mesmo num buraco, num canto qualquer da estação.

É então que decidem narrar, cada um a seu modo, a sua própria história de amor. Uma maneira de passar o tempo e igualmente resgatá-lo, como um sorvo de vida, um solvente para a dor de viver. Quatro relatos se seguem: 1) A triste história de Makhanlal, 2) A história de Gagan Baran, 3) O casamento do Dr. Abani e 4) O monólogo do escritor. Histórias de amor, de uma existência comum, cotidiana, de sonhos que se esfumaçam, de fracassos que se instalam, de tempo que se esgota, implacável, de desespero.

Publicado em 1951, quando Buddhadeva Bose (1908-1974) encontrava-se no auge de seu fulgor criativo, este romance enquadrado (com prólogo, quatro histórias distanciadas no tempo e no espaço, e epílogo) é um dos mais importantes trabalhos do autor e da literatura bengali. Um dos trechos que comprovam o valor de ambos, e que funciona como uma isca para o leitor sensível, que vive em busca de obras de qualidade, é a cena em que o casal surge à porta da sala de espera da estação:

"E, sob o escrutínio daqueles quatro pares de olhos, os que tinham feito a porta se abrir ali se detiveram. Era um casal. O rapaz segurava a porta entreaberta; não estava bem visível, mas havia indícios de um rosto, a pele avermelhada de frio, um pulôver marrom tricotado à mão e uma calça de tecido barato. A seu lado uma moça ― quase se aninhando a ele, ainda mais obscurecida. Mal se podia vê-la: apenas um lampejo de cabelo negro, uma orgulhosa risca escarlate no meio da testa, indicando ser casada, o pescoço suave e jovem, a luz branca lhe batendo de lado no rosto. Os dois pararam ali por apenas alguns momentos, disseram alguma coisa baixinho, viraram-se e se foram ― a sensação, porém, foi de uma lufada de ar quente entrando naquela sala de espera hibernal. Sem dúvida eram recém-casados, talvez de alguns meses, talvez um ano, mas estavam perdidos ― ainda ― em seu amor um pelo outro. Aquela leve pausa à porta; as palavras suaves trocadas, ou talvez não trocadas, depois a retirada; com tudo isso deixaram bem claro aos quatro homens de meia-idade que ainda eram habitantes do paraíso, que enquanto tivessem um ao outro não queriam mais nada, mais ninguém".

Raramente lemos um trecho tão sedutor e profuso de imagens vagas e que, paradoxalmente, encerram precisão. Reparem como as frases sugerem dúvida e apelam aos sentidos, com o uso de palavras que surpreendem no contexto e que servem, funcionalmente, para exprimir as incertezas dos quatro observadores quanto ao que veem e como o veem, à meia-luz, na distância, os sentidos embotados pelo cansaço e pelo frio.

Pela maneira como foi cunhado, este trecho é quase um poema, corroborando as palavras de Octavio Paz, segundo as quais todo romance possui, em sua linguagem ― e por sua própria natureza ―, algo de inesperadamente poético.